Horizontes

Clementino Junior
5 min readApr 10, 2020

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“Janela de Janú” — foto de celular por Márcio Januário — Morro do Vidigal — 09 de abril de 2020

por Clementino Junior ( Clementino Junior )
Cineasta, Cineclubista, Educador Audiovisual, Pesquisador e Doutorando em Educação do GEASur/Unirio, e Fundador do CAN — Cineclube Atlântico Negro.

“We starve, look at one another short of breath
Walking proudly in our winter coats
Wearing smells from laboratories
Facing a dying nation of moving paper fantasy
Listening for the new told lies
With supreme visions of lonely tunes
Somewhere, inside something , there is a rush of greatness
Who knows what stands in front of our lives

Nós olhamos esfomeados um para outro sem fôlego
Andando orgulhosos e agasalhados
Vestindo cheiros de laboratório
Encarando uma nação que morre
De uma história escrita que é real
Ouvindo as novas mentiras contadas
Com supremas visões de músicas solitárias
Em algum lugar, em algo, há um pouco de gratidão
Quem sabe o que nos espera diante de nossas vidas

(Let The Sunshine in, do musical Hair)

Em alguns lugares ainda se pode chegar na janela e observar o horizonte, sem outras casas, prédios, e outras janelas que têm seus horizontes igualmente abreviados pela nossa presença. Observadores e observados. Paisagem típica dos ambientes onde a aglomeração se tornou inimiga, não por uma possível formação de grupos rebeldes ou com planos de revolta. Uma janela que te tira das quatro paredes e expande sua visão ao infinito, um horizonte imensurável que só um planeta redondo “poderia” proporcionar.

Nesse sentido as janelas se tornaram nosso “ponto analógico” de contato com o outro em várias cidades. Onde vemos ruas vazias, outrora cheias e transitadas. Onde já percebemos, quando na área urbana, as famosas ervas que as “tias”, que hoje não deveriam estar na rua, catavam para fazer chás milagrosos, dentre eles o famoso “quebra-pedra”, bom para os rins. Onde vemos o retorno de alguns bichos que se escondiam, solitários nas matas sobreviventes das grandes cidades, não se incomodando em “dar um rolê”, já que até o momento não há uma definição sobre alguma fragilidade ao vírus nos chamados “animais irracionais”. A janela delimita o ponto de vista de quem tem medo da morte e tenta enxergar vida no cotidiano de semanas atrás.

Janela no latim vem de janua, que significa porta de entrada ou saída, no caso específico, de um país. No português januela, diminutivo de porta, virou janela. Os portugueses ao se plantarem num país rico em ventos, trouxeram as janelas para o nosso vocabulário, e não as ventanas, como se chamam na Espanha, que também trazem este significado no inglês Window (de Wind = vento). Talvez por essa colonização, não nos tenhamos habituado ao símbolo do vento como movimento nas ventanas, mas em uma “portinha” presente em imóveis. Portinhas que nos deixam um tanto estáticos e contemplativos diante do movimento dos ventos que avançam nas ruas. As ruas que movimentaram o país, e cujas mudanças desses ventos, a cada momento, mudou de maneira dramática as crenças e as ideias de seus cidadãos. Alguns buscavam seus direitos nas ruas. Poucos se manifestavam, cômodos, em suas janelas, em uma paródia confortável de nuestros hermanos que levaram suas panelas para as ruas. As janelas fazem parte de onde estes firmam seu ponto de vista. Quem tem ventanas em casa, se mobilizaram nas ruas, assim como alguns que acreditavam ser críticos e viram sua crítica ser tomada com a velocidade de um “golpe” da colher na panela por aqui.

Nesta semana santa não tenho como pensar na violência dos primeiros panelaços nas janelas há alguns anos, com palavras de ordem contra uma mulher, e não lembrar do evento que sempre me incomodou nesse feriado sagrado. Quem me conhece sabe que não curto chocolate, mas estou falando da “malhação do Judas”. Hábito trazido pela igreja católica, acontece no sábado de aleluia, quando populares escolhem seus desafetos, podendo eles ser da comunidade, da política, etc. e caracterizam um boneco (habitualmente homem, mas não só), o penduram por uma corda simulando uma forca, e o colocam em um ponto central do bairro, habitualmente na praça. O “ritual” termina em um ato em que adultos e crianças pegam pedaços de pau e destroem com violência o boneco, quando não colocam fogo no mesmo, de tal maneira, visão minha, que deixaria um encapuzado da Ku Klux Klan constrangido.

A catarse deste ritual, em contraste com todo o sentido de comunhão que a semana santa deveria trazer às famílias, mostra uma face que se faz no cotidiano mais presente em outras linhas religiosas, mas aí são outros rituais e outras leituras violentas de Deus.

Esta semana santa talvez tenhamos um boneco ou outro queimado e espancado nas praças, já que, assim como certos dogmas não são respeitados ou cumpridos por seus fiéis, não será um vírus que manterá a todos em seus lares, longe da primeira grande festa de um país fundado no catolicismo. Nas janelas essa energia tem se feito presente, em opositores ou arrependidos “malhando” seu traidor em panelas, invertendo a lógica dos primeiros panelaços, e não por falta de vontade de malhá-lo na rua, ou até de acreditar que ele tenha traído algo a que sempre foi fiel, em seu discurso e em seu gestual.

Seja na rua colocando a vida em risco, ou nas janelas se sentindo falsamente saudável e protegido, um sentimento de indignação transformado em violência nas palavras e no barulho ecoa nos bairros. Essa portinha do país ainda não se faz representativa nos outros países, que se veem na disputa por recursos tecnológicos para salvar vidas. No momento em que o mundo deveria estar pausado, a indústria no mundo não para de produzir. Muita gente trabalha nestes espaços ou nos serviços vinculados à entrega. Então quem ainda pode estar na janela, observando, gritando, ou dizendo “já vai” pro motoboy ou pro entregador do supermercado?

Olhamos buscando espelho na janela da frente. Nós olhamos esfomeados um para outro sem fôlego, encarando uma nação que morre, de uma história escrita que é real. Ouvindo as novas mentiras contadas, com supremas visões de músicas solitárias.

Se sua janela não tiver um horizonte, este não deixa de existir. Se, como no refrão da canção “deixe o brilho do sol entrar”, você se sentir abraçado pelo calor, quem sabe o que chamamos de Deus não estará se manifestando ali, vitamina D, luz e sombra, duas direções, como a cabeça do Deus Janus, cuja cabeça tem duas faces opostas e, que deu origem a janeiro, por representar a entrada e saída do ano, e que simboliza as transições pelas quais temos que passar, para aprender o que é Deus, entender o que o vento traz e leva, e como a pausa antecipa o movimento necessário para podermos deixar a janela e voltar pra rua de outra maneira, com outra cabeça.

Em algum lugar, em algo, há um pouco de gratidão Quem sabe o que nos espera diante de nossas vidas?

PS: agradecimentos à amiga e professora Lucia Débora pelas trocas na produção deste texto, e ao amigo Márcio Januário que afetuosamente atendeu minha solicitação com a fotografia de sua janela.

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Clementino Junior
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Written by Clementino Junior

Clementino Junior é cineasta, educador audiovisual, doutorando em educação (GEASur/UNIRIO) e fundador do CAN - Cineclube Atlântico Negro

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