Hábito

Clementino Junior
4 min readMay 27, 2022
Still do filme TIÃO — direção Clementino Junior — fotografia Robson Maia — 2016

por Clementino Junior ( Clementino Junior )
Cineasta, Cineclubista, Educador Audiovisual, Pesquisador e Doutorando em Educação do GEASur/Unirio, e Fundador do CAN — Cineclube Atlântico Negro.

“Nós somos aquilo que fazemos repetidamente. Excelência, então, não é um modo de agir, mas um hábito.”
Will Durant

“O homem é livre, mas ele encontra a lei na sua própria liberdade.”
Simone de Beauvoir

Em um evento com sábias e sábios do Axé para discutir questões ambientais na perspectiva das populações tradicionais, percebi um posicionamento ainda presente nas principais metas: o de colocarmos nossas vozes transcritas como projeto de lei e propostas que pensem o meio-ambiente para além da visão restrita de alguns ambientalistas que sempre protagonizaram este debate. Em outras conversas com amigos e ativistas, sempre afirmo que a lei seria um curto passo e que estarmos mais representados em número e qualidade no judiciário, enquanto povo de terreiro, seria tão importante quanto nos gabinetes do congresso. Longe de ser sobre poder, essa é uma discussão sobre persistência de nossa existência. Como afirmaria o grande Muniz Sodré, trata-se de um Semiocídio, ou a morte de nossa existência enquanto identidade.

A Lei Áurea foi criada por mera formalidade para pôr fim à escravidão que, no papel, nunca foi legitimada, pois, para a civilização, a escravidão é um hábito. Não um hábito do convento, mas, trocadilhos à parte, uma prática de longos séculos em que povos com maior poder estabelecido pela violência, fruto de guerras ou batalhas entre nações e tribos, invariavelmente subjugava as tropas e populações conquistadas e as assimilava à sua vontade e às suas tradições. A diferença na conquista das Américas foi a “novidade” das inúmeras etnias nativas serem vistas como uma só, “Índios”, e a cor como determinante de inúmeras etnias sequestradas para o novo mundo, “Africanos”. Por um longo período, os senhores de escravos sabiam, mesmo misturando e confrontando as etnias escravizadas, as origens e nações de cada negro — rótulo da diáspora africana –, pois suas origens, físico e expertise nas práticas extrativistas os valorizavam nos mercados humanos. E, ao longo desse período, os Africanos se uniram aos poucos Indígenas sobreviventes e formaram o conjunto de habitantes do tal do Brasil.

Hábito vem de Habitus, o jeito ou modo de ser, algo que está além das tradições da moral, do bem e do mal, e que se torna ação pela frequência de sua prática. Talvez por isso o Brasil se dispôs por último a colocar em lei o fim da escravidão, mas, aparentemente, esqueceram de carimbar a carta de Isabel, porque, assim como a chamada revolução industrial, o racismo decorrente desse processo se diversificou e a ilegibilidade deste documento faz com que pensemos sobre a quem atendem as leis.

As chamadas forças da lei no Brasil, em especial na sua antiga capital, cidade onde moro, mais de dois séculos depois, mantém em seu brasão elementos que representam os “donos de terra”: as armas cruzadas, a cana-de-açúcar e o café, riquezas que, em nenhum momento da história, se pretendeu dividir com esses povos que foram mão de obra por muitas gerações. O hábito de se ignorar a aplicação das leis a alguns habitantes é antigo. Assim como em livros sagrados se habituou também a naturalizar uma leitura própria de cada parágrafo, só permitindo alguma pequena justiça às populações marginalizadas quando conveniente.

Lei sem poder não cria o hábito do respeito ao que está escrito.

Um bilhete premiado da loteria zoológica, que é “ilegal”, é mais respeitado do que uma lei feita para cumprir alguns artigos da declaração universal dos direitos humanos. Em “Tenda dos Milagres”, Jorge Amado já dava uma pista disso, em um momento em que a educação era um privilégio ao narrar a luta de Pedro Arcanjo — o Ojú Obá do Terreiro de Magé Bassã — para se tornar advogado e defender o povo de Axé em momento da história de grande perseguição policial aos terreiros e aos capoeiristas, práticas de pretos e mestiços. Hoje, com uma diversidade étnica de lideranças e integrantes, o chamado racismo religioso só aumenta contra o povo de Axé, pois se tratam as tradições de matrizes africanas como religião e, mesmo na lógica religiosa, não se respeitam as leis que combatem a “tal” da intolerância. Se a religião é vista como preta, não há mãe ou pai de santos brancos que não provem um pouco da ilegibilidade de leis “da mesma cor”.

O machado de Xangô tem que estar presente em todos os tribunais para que nossas sabedorias possam se converter em leis para todas as pessoas, além de ter quem defenda as suas aplicações. Assim como as tropas, guardas, assim como as instâncias de poder, enfim, assim como a população que a constitui(“são”).

“A Tenda dos Milagres é uma espécie de Senado a reunir os notáveis da pobreza, assembleia numerosa e essencial. Ali, se encontram e dialogam iyalorixás, babalaôs, letrados, santeiros, cantadores, passistas, mestres de capoeira, mestres de arte e ofícios, cada qual com seu merecimento”.
(Tenda dos Milagres, Jorge Amado)

Gostou? Nos siga e compartilhe este texto a quem possa construir um diálogo positivo.

Texto com revisão crítica de Tayna Arruda

--

--

Clementino Junior

Clementino Junior é cineasta, educador audiovisual, doutorando em educação (GEASur/UNIRIO) e fundador do CAN - Cineclube Atlântico Negro