Isolamento
por Clementino Junior ( Clementino Junior )
Cineasta, Cineclubista, Educador Audiovisual, Pesquisador e Doutorando em Educação do GEASur/Unirio, e Fundador do CAN — Cineclube Atlântico Negro.
Como não quis fotografar e explorar inadvertidamente a pessoa, memorizei e fiz um rough da cena que vi, próximo ao Supermercado Mundial da Voluntários da Pátria em Botafogo. Volto com poucas compras e vejo um morador de rua dormindo, utilizando como “isolamento” (mas que de certa forma era uma caixa acústica para ele) uma caixa da Tok & Stock que, para quem não sabe, é uma marca que vende “tudo para o lar”. Para alguns, é o tipo de foto clichê para ganhar prêmios, mas preferi fazer um simples rascunho do que vi para ilustrar a reflexão que carrego da cena, sem me aproveitar do indivíduo, para quem não tenho solução imediata.
(texto publicado junto com o desenho no meu perfil no “Livro de Faces” em 11 de dezembro de 2018)
Três anos após realizar o curta-metragem Na Rua, com os amigos Ziza Fagundes e Marcelo Gomes, me deparo com a situação e o relato presente na imagem que ilustra esse texto. Dores são dores e não devemos quantificar ou qualificar sem entender as histórias por trás delas, mas essa imagem na calçada da Voluntários da Pátria, na calçada oposta a uma sala da principal rede de cinemas de arte na cidade, me faz refletir sobre dois assuntos: isolamento social e exposição da imagem.
O chamado isolamento social acontece, de forma voluntária ou compulsória, por inúmeros motivos. O Covid-19, por exemplo, expõe um sintoma que não está na propagação do vírus, mas em quem obedece ou não as regras impostas do isolamento social para impedir essa epidemia e que, partindo deste “poder” de quebrar as regras e “cair as máscaras”, sai do papel de protagonista para o papel de vetor. A maior ou menor imunidade ao vírus para esse grupo é irrelevante, pois, para quem tem um estilo de vida autodestrutivo, não renunciar aos prazeres em troca de segurança faz parte da vida. Como a permissão que lhe é dada para dirigir em alta velocidade, pondo sua vida e dos demais em risco, e, mesmo sendo multado, não pagar, pois sabe que pode fazê-lo.
Voltando à imagem da pessoa em situação de rua, que se coloca “dentro da caixinha”, a opção é algo irrelevante. Não saberei jamais a origem dele, o que pensa, qual sua formação, o porquê de estar lá. Ele é uma pessoa que está na rua e se protege, no meio da tarde, em uma caixa de papelão. E quantas casas durante a pandemia não viraram caixas para aqueles que não tem opção da desobediência? Sim, opção, pois entre o medo, a fragilidade da saúde e o risco a qualquer um, poder se isolar é um triste privilégio. A sociedade é pensada e definida a partir da dinâmica entre as pessoas que a compõe. Uma vez as pessoas isoladas, essa ação migra para as caixas de concreto onde vivem e para as caixas digitais, portáteis ou desktops, onde dialogam com uma parte seleta do mundo.
Sobre a exposição da imagem, essa também pode ser voluntária ou compulsória. Participei hoje de dois encontros virtuais gravados, onde se pediu autorização para a gravação, enquanto procedimento legal, mesmo que em um ambiente onde já nos dispomos a discutir assuntos aberta e publicamente. Casos recentes expõem as pessoas fazendo coisas diante das câmeras que não deveriam, por acreditar que estas estariam desligadas. O poder de expor e ocultar o que deveria e o que não deveria ser mostrado. Nem todos podem.
I’m the man in the box
Buried in my shit
Won’t you come and save me?
Save me
Eu sou o homem dentro da caixa
Enterrado em minha merda
Você não virá me salvar?
Salve-me
(Man in a Box — Alice in Chains — Composição: Layne Staley / Jerry Cantrell — 1991)
A denúncia da imagem nem sempre salva o oprimido, salva quem produziu a arte romanceada a partir da realidade. O fato de eu tê-la desenhado de memória ao invés de fotografar foi um instinto de preservar a pessoa, a qual nem vi o rosto, mas que, provavelmente, seria pela parte do corpo exposto, reconhecida por familiares. Mas a imagem só ilustraria nesse momento a feliz coincidência do fotógrafo pronto para documentar e compartilhar o seu registro, “poupando o ator da cena”. Sem o ator, não haveria cena e, sem a cena incomum, não haveria retrato da desigualdade. E por que ainda queremos ver retratos fotográficos deste cenário de desigualdade? Será que um artista inspirado na dor ou mero sono daquele jovem voltará depois a sua procura para lhe dar o retorno da obra?
Eu e meus colegas do documentário Na Rua nos esforçamos para reencontrar nossos dois depoentes no documentário de 5 anos atrás. Não consegui reencontrá-los para levá-los à estreia do documentário. Preparei um saco com muitas roupas e eles não voltaram mais ao ponto onde dormiam quando entrevistados. Outra colega de nossa equipe encontrou o mais velho dos dois, na Cinelândia, que a informou sobre o assassinato do mais jovem. Ele seguia sozinho, agora sem seu parceiro de viaduto, catando latas para se abrigar em outras caixas. Nem sempre conseguimos devolver ao modelo a obra a qual inspirou. Nem sempre lembramos ou sabemos o nome do modelo. Mas ele retrata algo que não gostaríamos de ver.
Meu rabisco tenta amenizar o real sem perder a denúncia. O homem da caixa fez sua opção e se expôs, provavelmente, sem pensar no que aquela caixa teria de diferente em relação a qualquer outra. A caixa de seu sono tranquilo em meio ao caos é sua forma de manter o isolamento social que sempre houve para quem não tem poder.
Esse texto contou com a revisão crítica de Tayna Arruda, e é dedicado à amiga Patrícia Pagu, ativista na iniciativa Escola de Rua, no Rio de Janeiro.