Otto não mia

Clementino Junior
3 min readJul 12, 2022
Otto & Lud — esferográfica sobre papel — Clementino Junior — 11/07/2022

por Clementino Junior ( Clementino Junior )
Cineasta, Cineclubista, Educador Audiovisual, Pesquisador e Doutorando em Educação do GEASur/Unirio, e Fundador do CAN — Cineclube Atlântico Negro.

“O que coloca os seres humanos da Ilha das Flores, numa posição posterior aos porcos na prioridade de escolha de materiais orgânicos, é o fato de não terem dinheiro nem dono”.
Trecho de Ilha das Flores, de Jorge Furtado

Otto é ficção, Ludmila não.

Otto é um cão típico do bairro, com donos que o julgam parte da família. Podemos dizer que ele, mais do que típico, é um privilegiado no bairro. Otto é levado a passear pela vizinhança pelo menos uma vez ao dia e, quando sai, sendo levado pelos donos ou não — e, nesse sentido, poderíamos pensar sociologicamente na vantagem em cães como Otto gerarem empregos aos dog walkers –, levam três sacos de supermercado para catar os seus presentes deixados na calçada.

Otto é privilegiado porque sua dona lhe dá atenção, o afasta dos cães que, quando se deparam com ele, latem e querem avançar e, ao menos duas vezes na semana, chega num cantinho de uma praça, quando não tem crianças, e o deixa correr um pouco sem coleira. No restante do tempo fica trancado em um apartamento sem varanda frontal, no quinto andar de um prédio antigo cheio de herdeiros do serviço público e das patentes que já moraram um tempo fora e voltaram às casas de suas famílias por separação ou por problemas financeiros pessoais.

Ludmila é uma cadelinha adotada pelo Corpo de Bombeiros. Num espaço disciplinar, foi acolhida por ser quieta, afetuosa, na dela, de boas, se tornou um xodó do bairro. Sua coleira, adquirida por seus pais da corporação, só a identifica. Nunca a vi com corrente ou cordão. Ela circula por onde e quando quer, mas sempre por perto do quartel. Só falta usar uniforme e sair junto com a defesa civil nas inúmeras emergências da região. A aparente independência de Ludmila, aos meus olhos, me lembra o que pessoas que não curtem pets afirmam sobre a autonomia dos gatos em relação aos cães. Mas esse papo de autonomia só interessa a quem é ou deseja ser dono de algo ou a quem a tem de fato. Teria Ludmila a autonomia de um gato ou ela seria uma exceção à regra?

E chega a ser curioso que Ludmila, que é adotada por uma instituição disciplinar, ao invés de uma família, possa ser percebida com maior liberdade do que o Otto, mesmo que ele seja mais calmo do que sua “vizinha militar”. Ela fica livre, solta, plantada na porta do quartel, passeia com os cadetes em treinamento, define seus horários e seu status de mascote é como se fosse uma patente. Mas talvez a rotatividade de “pais e mães” no batalhão desvincule essa posse e ela, em sua existência, aos olhos da vizinhança, transmita essa paz e liberdade. Mas possa se sentir até com invejinha de quem está na coleira como Otto, mas tem um tempo dedicado de quem lhe possui.

No fundo os dois têm donos, linguagens e experiências.

A diferença é que Otto não mia. Ludmila talvez, mas nem precisa.

A autonomia não está na coleira e nem na aparente liberdade. Tem que querer sair do lugar e, daí, se arriscando, alcançar.

Leia os demais textos do blog e divulgue.

Texto com revisão crítica de Tayna Arruda

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Clementino Junior

Clementino Junior é cineasta, educador audiovisual, doutorando em educação (GEASur/UNIRIO) e fundador do CAN - Cineclube Atlântico Negro