Visibilidade e Dome Office
por Clementino Junior ( Clementino Junior )
Cineasta, Cineclubista, Educador Audiovisual, Pesquisador e Doutorando em Educação do GEASur/Unirio, e Fundador do CAN - Cineclube Atlântico Negro
“Visibilidade é bom para mostrar que nem todos são iguais.”
São Paulo Apóstolo
Nunca imaginei começar um texto por uma citação bíblica. Não é meu perfil, mas essa frase que junta visibilidade e desigualdade caiu como uma luva, e me permitirei contextualizar essa epígrafe ao texto. Citar um romano e compartilhar pelo meu celular chinês, não me aproxima mais do assunto que tratarei, metáforas e coincidências não devem chegar a esse ponto. Mas nesse texto me permitirei recontextualizar ou me apropriar de alguns fragmentos do nosso cotidiano para traçar um fio condutor, assim como autores de filmes biográficos que atropelam a linha do tempo em nome da boa dramaturgia.
Dramaturgia é o que me trouxe aqui, ao ficar refletindo, coisa de quem está de quarentena (há um mito de que a clausura dá mais tempo pra pensar, mas o mito caiu com o Home Office) ao notar que diante das primeiras medidas contra a pandemia do Covid-19 no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, onde moro, a maior rede de streaming Norte-americana com sua filial aqui era apontada como o “passatempo” para quem tem internet rápida e gosta de séries e filmes. De repente canais da TV Paga que não cobram barato por suas mensalidades adicionais nos “pacotes”, liberaram pelos próximos dias de março o acesso à sua programação sem cobrança, para diminuir a ociosidade desta quarentena. Uma espécie de solidariedade estratégica, para não perder mercado para uma concorrente que vem, pela internet, determinando o ranking do mercado. Mas de que mercado estamos falando? Quem paga o Pay Per View? Quem paga pela internet? O que o V.O.D. (Video On Demand) e a “Uberização” tem em comum? Se tivesse as respostas, não as daria aqui, venderia, pois o mercado dita as regras… eu não.
Tentando responder pra mim mesmo enquanto você lê, como uma pessoa amiga de um tagarela que não dá espaço para um aparte ou um retruque: se na guerra, havendo morte e fome, mercados continuaram lucrando muito com a morte e a fome, não é, como diria uma liderança, “uma gripezinha” que abandonaria a necessidade do lucro. Ou melhor dizendo, a “capetalização” da solidariedade. Mas como também não segui para a área da saúde, me manterei no que entendo ainda um pouquinho, as “mídias”. E pensando no título e na sua epígrafe, volto pro quarto e sala de cada clausura, para a tela do celular ou do computador, ou para a TV. Sim, essa TV responsável, e muito, por uma tradição que sucedeu ao rádio, na capacidade e manter pessoas em casa no horário nobre em outros tempos. No século XXI a TV se torna “a opção que sobra” para passar o tempo da quarentena em casa, com programas que visam informar e conscientizar os cidadãos ao isolamento como forma de não proliferar o COVID-19, mas também tendo que dar o “exemplo” paralisando a gravação de seu carro-chefe: as novelas. Em 51 anos foi a primeira vez que vi algo que jamais pensaria ver em vida: parar uma novela na metade para poupar o elenco, e substituir por uma reprise… o que dirá 4 novelas!
E aí chegamos onde se dá um dos primeiros nós desse cordão que não encontramos as pontas: as principais redes de streaming estão bombando nos acessos e a da maior empresa de conteúdo multimídia, que também ainda é a maior rede de emissoras do Brasil, tem sofrido para dar conta de tantos acessos simultâneos, pois ainda estava captando clientes, assim como as principais redes de banda larga no Rio de Janeiro estão com seus momentos de queda de transmissão mais frequentes, pois lazer e trabalho se transferiram para os lares, ou seja, muito maior número de acessos, o que antes era filtrado pelas redes empresariais. A “máquina” não pode parar, mesmo que seja para poupar a máquina da empresa em primeiro lugar, e a do funcionário em segundo lugar. Funcionários que trabalharão então com sua máquina doméstica.
Doméstica no dicionário é “referente ao lar”, pode ser a profissional que cuida da casa do Senhor ou da Senhora, quase sempre mulheres. Domus, palavra em latim, remete à casa, e Domo, à cúpula da igreja, o que traz um ar sagrado ao “domicílio”. O Senhor do domicílio, no caso, é o Dominus, dominador, o que pela construção da palavra traz outros pesos a esse posto, ou Dom, quando referente a Reis em seus reinados. Essa viagem minha no ‘domo’ da questão é pra situar alguns personagens peculiares de outra dinâmica que tem a ver com a visibilidade dentro e fora do domicílio.
Os trabalhadores domésticos são os que tem sido mais expostos à pandemia nas ruas, pois há um jogo, seja no emprego formal, e principalmente para os que permanecem informais, nos quais por melhor que sejam, eles não podem fazer “Dome Office” e nem faltar ao trabalho. Cada transporte proibido ou limitado, complica seu acesso ao domicílio do seu empregador. Boa parte desses trabalhadores, semelhantes ao V.O.D., trabalham On Demand, mas se não cumprem o Demand, não recebem o V(encimento).
Assisto pela TV trabalhadores tendo que justificar às autoridades que precisam trabalhar, apenas para ter acesso aos poucos trens que circulam nas linhas férreas da região metropolitana do Rio de Janeiro, e no mesmo jornal a queixa do volume de idosos que circulam pelas ruas, principalmente da Zona Sul, e que são gentilmente aconselhados a não ficarem nas ruas por serem o principal grupo de risco em caso de contaminação pela “gripezinha” da tal “liderança”.
Existem idosos também onde moram os trabalhadores domésticos, que não podem ficar em quarentena pois não terão como se alimentar, se não forem os escolhidos pelas autoridades por algum critério que os confirme como trabalhadores, para conseguir garantir mais aquela diária. Voltamos a lei da “vadiagem” para os trabalhadores “essenciais”.
Assisto pela internet a atriz que gravava live em seu perfil na rede social, enquanto sua empregada preta, com o clássico uniforme branco, herança dos tempos que Dom era Dom, Senhor era Sinhô e Senhora era Sinhá, trabalhava ao fundo. E após críticas, ela se defendeu afirmando que a empregada preferiu ficar em quarentena na casa da patroa para não ficar sozinha na própria casa. Não voltarei ao parágrafo que falo sobre “domesticar”, verbo que não referenciei mas todos dominam bem no Brasil, um dos poucos países no mundo a manter essa função trabalhista, assim como seus elevadores e acessos de serviço. Mas volto aos bairros e às comunidades onde os que não podem ficar em quarentena encontram para além dos obstáculos cotidianos para chegar ao trabalho, com transportes de má qualidade, agora nem os tem para tal. Nem todo Sinhô e Sinhá “abrem mão” e pagam o Vencimento On Demand para essas trabalhadoras e esses trabalhadores se manterem nos dias que não podem contribuir em suas casas, como o fazem sempre, pois o bunker está cheio de compras para as semanas que se seguem. O “quarto de empregada” deverá ser o primeiro cômodo a complementar o que precisar ser estocado.
Assisto pelas redes sociais, em páginas ativistas dos direitos humanos sobre a falta de água nos 2 principais complexos do Rio de Janeiro, em um momento que a ordem é lavar as mãos com água e sabão, e se não puder com o inacessível e inflacionado álcool gel? Aquele produto que deve estar com vários frascos estocados na casa do patrão. A desigualdade da qual o São Paulo Apóstolo mencionou se demonstra no poder de compra de produtos, no poder de compra do acesso às redes de TV e de internet, no poder de ter água corrente, com “Geosmina importada”, em sua torneira para a sua higiene, e a possibilidade de ser bem tratada no seu ir e vir em momentos e locais de acesso proibido.
Sobre as grandes cadeias de entretenimento na TV aberta e paga, e na internet, surge na última rede um movimento por parte de artistas, que mesmo em tempos sem pandemia já vinham sendo perseguidos de fazer livremente seus shows com discurso livre, em praças, palcos, transportes públicos de massa, festivais etc. Essa perseguição surgiu por termos um outro vírus que tomou corações e mentes, não uma maioria da população, mas de um contingente grande o suficiente para criar um ser acima das gripezinhas, e que persiste em transformar a cultura, a educação e a saúde em vilãs constantes em seu projeto de visibilidade. Projeto esse que se baseou em outros projetos bem sucedidos de visibilidade, projetos que inclusive fundamentam o que conhecemos como publicidade. Na contramão desse vírus pré-pândemico, e suplantando os conceitos domesticados de “dome office”, cineastas tem liberado suas filmografias na rede, músicos famosos e anônimos tem feito apresentações online e offline (janelas dos condomínios), educadores não formais dão aulas online livres, a arte em si tem sabido como sempre foi na história, jogar com o regulamento embaixo do braço e transcender. Trazer visibilidade e trocas diretas para os que se encontram imobilizados em seus domicílios, em suas propriedades, ou em seus reinos.
Assisto a tudo da mesma cadeira onde escrevo, nesse computador com componentes chineses, divagando sobre a epígrafe do apóstolo romano (ao contrário do que disse que faria), e me apropriando desses contextos que ora vivo, ora convivo, para pensar de maneira datada, sobre o que esse momento de auto isolamento, e de outras formas de manter a máquina funcionando a partir de nossos domus, trará de aprendizado para os que podem e os que não podem. Para os que podem ser vistos em sua arte, e os que não estão podendo nem defender as suas demandas diárias para seus próprios domicílios. Para o quanto a arte do encontro é obrigada a se digitalizar, e como faz falta aquele abraço do Gil. Para se domesticar sem as domésticas, e ser senhor ou senhora de seu domicílio. Para lavar as mãos com água e sabão após teclar o final desse parágrafo, e deixar o álcool gel para a falta do sabão. E agradecer ter “água de cheiro”, pois amigas e amigos meus não estão sentindo nem o cheiro da água. Ah… encontrei a outra ponta do cordão… façamos novos nós.