Yvy marã e’ỹ
por Clementino Junior ( Clementino Junior )
Cineasta, Cineclubista, Educador Audiovisual, Pesquisador e Doutorando em Educação do GEASur/Unirio, e Fundador do CAN — Cineclube Atlântico Negro.
“Conhecer-se a si mesmo é sentir a dor do mundo e não ficar indiferente a ela.
É comprometer-se com a fraternidade à qual estamos ligados.
É ser humano na sua integral constituição. (…)
Hoje é o melhor dia para começar o conhecimento de si.”
(Daniel Munduruku — Conhece-te a ti mesmo — 2019)
Quantas notícias temos visto sobre o Covid 19 em aldeias indígenas? As aldeias vêm sendo impactadas desde a chegada do vírus ao país. A escassez de recursos e produtos vindos de fora, além da menor presença de trabalhadores voluntários que não puderam manter sua atividade no contexto de isolamento, em um país que parou, são alguns dos aspectos observados. E quando o país para, são os povos pindorâmicos, denominação do intelectual Antônio Bispo dos Santos, os mais impactado pelas pressões do Estado em seu cotidiano. Eles estão deslocados e isolados há séculos.
O conhecimento de si, quando se trata de raça, e concordando com o intelectual Daniel Munduruku, reforça a humanidade. A desumanização está em quem usa e define a raça como instrumento de controle ou de maneira genocida.
Na segunda semana de abril se noticiou em rede nacional um caso de contaminação em uma aldeia, e se “acendeu o alerta” sobre os riscos de contaminação em outras. Como se esse risco não existisse desde que “se assumiu” o primeiro caso no Brasil. Seria esse cenário uma forma de assumir que os povos originários dessa terra são um grupo a parte no país?
Creio que aos olhares mundiais sobre a Amazônia, e dentro de um ponto de vista que se “colore de verde” o mapa, seja “natural” que o símbolo vivo da floresta seja os povos originários, o que contribui dentro de um discurso ecológico, para que lideranças indígenas sejam visibilizadas como porta-vozes da floresta-mãe. E o são por legitimidade, mesmo quando o poder do Estado reduz paulatinamente o seu território, os deslocam, os ameaçam e, quando necessário, os desmentem. Os legítimos ecologistas neste país batizado de Brasil são os povos originários. Em segundo lugar, são também legítimos ecologistas os africanos sequestrados para o trabalho escravo, realizado aqui de maneira nada ecológica, mas com mãos que sempre souberam extrair do meio ambiente, permitindo que ele permanecesse produzindo riquezas. A palavra ecologia, que vem do grego oikos (casa) e logia (ciência), seria algo como o “estudo da casa”, ou “a casa dos seres vivos”. Os pindorâmicos em toda sua diversidade étnica, entendem o que é e como cuidar dessa casa. Os africanos escravizados conseguiram, mesmo com todas as opressões, criar suas casas em suas comunidades tradicionais e resignifica-las. Se não fosse assim um lugar como o Quilombo dos Palmares, que além de fugitivos do cativeiro acolheu também indígenas, não seria um estado independente por praticamente um século. Mas o Brasil ao ser fundado deixa de ser a casa de quem já estava aqui, e de quem chegou contra a vontade.
O apagamento identitário tem atuado para fazer pessoas saírem de suas aldeias, quilombos e comunidades tradicionais e irem para os grandes centros urbanos, continuando com toda a produção que extingue os recursos naturais.
Ou como disse recentemente a legítima voz do meio-ambiente no país, Cacique Raoni Metuktire:
“Por muitos anos, nós, os líderes indígenas e os povos da Amazônia, temos avisado vocês, nossos irmãos que causaram tantos danos às nossas florestas. O que você está fazendo mudará o mundo inteiro e destruirá nossa casa — e destruirá sua casa também.”
O Dia do Índio se aproxima, mas essas vozes são sensibilizadas a ouvidos estrangeiros, muitos preocupados com um dos últimos espaços possíveis para pensar sobre um ecossistema saudável, ou que tem interesses tão nocivos quanto os governos que vem reduzindo o espaço da floresta amazônica.
Lógico que a luta indígena é maior e mais antiga do que a necessidade no último século de se preservar as florestas. O olhar preconceituoso sobre estes já é presente desde o primeiro documento escrito para a Coroa Portuguesa sobre o país “recém descoberto”.
“Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos.
(…) E enquanto fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara.
(…) Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências.”
(Trechos da Carta de Pero Vaz Caminha à Coroa Portuguesa — 1500)
A carta “deslumbrada” do escrivão, com as informações exóticas e até certo ponto eróticas, narradas por este cristão responsável pelo diário da expedição em 1500, me chama atenção para outro dado grave além do fato de os colonizadores “trouxeram a cruz e levarem a prata”, parodiando Harum Farocki em sua instalação artística crítica aos colonizadores espanhóis.
Se eu começasse este texto relatando a chegada de europeus ao Brasil, interagindo com os anfitriões no porto, oferecendo iguarias, etc., e que chegaram nas Américas democratizando a morte a partir do contato, a metáfora da doença que vem dos velhos continentes ficaria mais clara. Em abril de 1500 não houve visita, foi a preparação de uma invasão.
Minha colega de pesquisa, Stephanie Di Chiara, afirma que o primeiro grande impacto ambiental nas Américas foi a chegada do homem branco. Refletir sobre essa frase destrói muito do que aprendemos na escola e vamos desaprendendo enquanto amadurecemos.
A ligação dos sobreviventes deste processo colonial com a terra em si é tão presente, que mesmo com todo o genocídio decorrente, seja pelas doenças, pelas mudanças de hábito ou abusos do processo colonial, houve uma “cura” sutil no cotidiano dos que vieram para o país. Há uma necessidade simbólica, e por vezes esquizofrênica, em um país que destrói seus diferenciais, mas se apropria de sua imagem, de suas lendas, de sua medicina, de sua sabedoria, para ostentar um nacionalismo que não se vê presente na humanização do outro.
Yvy marã e’ỹ, em Guarani, significa “Terra sem males”. É o compromisso de uma nação da terra com a sua aldeia, seu país, seu planeta.
Se hoje vemos uma sociedade doente, que esconde suas aldeias, quilombos, favelas, suas raízes, seus rituais da natureza, e estimula o controle por “livros sagrados”, grileiros armados, Caveirões, Helicópteros, e controle de aglomerações por sinais de telefonia, é porque o vetor desta doença está em insistir na diferença, denomina-la raça, e situa-la para que se torne vulnerável ao que atinge a humanidade como um todo.
O mal da terra não veio de quem sempre cuidou da casa.
Para fechar esse tema, do qual sou simpatizante com raiz distante, e atento às vozes pindorâmicas, segue a poesia de Marcia Wayna Kambeba.
“Mas, viver na cidade não tira o direito de ser,
Nação, ancestralidade, sabedoria, cultura,
Somos filhas de Nhanderú, Senerú, Nhandecy
O Brasil começou bem aqui…
Não nos sentimos aculturadas,
Temos a memória acesa,
E vivemos na certeza de que nossa aldeia
Resistirá sempre ao preconceito do invasor,
Somos a voz que ecoa. Resistência? Sim senhor!”
(Amazonida — Marcia Wayna Kambeba — 2018)
Agradecimentos às contribuições de Celso Sanchez e Tayna Arruda.