Reza Forte
por Clementino Junior ( Clementino Junior )
Cineasta, Cineclubista, Educador Audiovisual, Pesquisador e Doutorando em Educação do GEASur/Unirio, e Fundador do CAN — Cineclube Atlântico Negro.
“Esses fatos são raros, porém, e as experiências assombrosas multiplicam-se; os médiuns curam criaturas a morrer. Leôncio de Albuquerque, que tratava caridosamente a Saúde em peso, anuncia, sem tocar no doente, o primeiro caso de peste bubônica, e cada vez mais aumenta o número de crentes.” (Espiritismo Entre os Sinceros — As Religiões do Rio, João do Rio, 1976)
Sempre gosto de lembrar sobre a importância do SUS em algumas conversas. Pensar a saúde da população em geral, com todas as dificuldades encontradas por ações e eventuais incompetências e corrupções governamentais, é entender a representatividade de um mínimo acesso à um serviço que já é pago “na fonte”, literalmente. No Sistema Único de Saúde é onde persiste uma esperança de que o genocídio de uma população pobre, preta e nativa, programado por séculos, não seja bem sucedido.
Também gosto de lembrar que o curandeirismo, o conhecimento das ervas medicinais, das tradições vinculadas ao bem estar e bem viver, são oriundas dos ancestrais desta mesma população que, hoje, depende de acesso aos serviços — sem planos — de saúde.
Se pensarmos no “SUS raiz”, antes da chegada da corte ao Brasil, e do investimento na ciência após o famoso grito do “virudum” — quem souber o que significa, sem consultar na internet, é “grupo de risco”, com certeza — , entenderemos que a sobrevivência na modernidade tem um preço. Não pergunte em qual moeda, pois é necessário ter preço na vida.
Em conversa com uma amiga esta semana, ela me relatou sobre como nesse período do “SUS raiz”, o conhecimento das ervas trazia, inclusive, a prática das ervas abortivas para interromper a gravidez indesejada, fruto de estupro por parte dos senhores de mulheres escravizadas. O cuidado com procedimentos era o mesmo com os filhos e filhas legítimos dos senhores, quando não dava tempo de correr para uma Santa Casa mantida pela igreja, mas havia por perto um pajé ou ama que tinham “a manha” para resolver as doenças tropicais com unguentos, chás e rezas.
A fé, ou outra forma como este ato de contato com a divindade seja interpretada, está presente desde sempre nas tradições deste “SUS raiz”, seja pela ligação naturalizada de homem-natureza nos povos ancestrais, ou no entendimento dos pacientes colonizadores de que “a reza forte” era a melhor anestesia ou calmante para todos.
Impressionante pensar que as ervas estão sintetizadas e comprimidas com ingredientes desnecessários para ter um custo. A fé se manifesta no desespero para ter dinheiro e comprar um estoque da medicação que “faz milagres”.
Mas fazer milagres têm um custo. O custo é entender que as conversas das pessoas mais velhas e curandeiras, que já tinham, pela sua sabedoria, um efeito terapêutico, foram substituídas por um relógio ao alcance, para atender ao máximo de pessoas no mínimo de tempo — pois o custo do tempo na saúde é particular e peculiar. E também entender que se tornar médico e cuidar da saúde das pessoas, por muito tempo, foi um privilégio para os filhos legítimos e que esse desenho é bem pessimista. A Escuta tem um preço. Então por que ainda acredito em um serviço de saúde público em um país com políticas genocidas em meio a uma pandemia?
Acredito que minha crença persista nas brechas possíveis deste sistema, sendo opressor ou oprimido, que raras vezes se encontra em outro setor. Um setor público de serviços que, por sua importância, já que lida com a população de maneira igual dentro do possível, ajuda a confrontar a falta de empatia com quem não pode pagar o custo do poder e da saúde. Durante o início do isolamento social, os maiores atingidos pelo contágio foram os mais pobres, mesmo havendo uma “democracia no acesso ao vírus”, fora das regras de isolamento social, pois, no momento dos sintomas, ter um plano de saúde durante um tempo fez toda a diferença. O vírus nunca foi democrático: “não é culpa dele” sua preferência por pobres, pretos e velhos. Poder pagar um plano é o único plano pensado por quem te governa e que nem por isso te respeita.
Os profissionais da linha de frente, no denominado “combate ao Covid-19”, e se isolam de suas famílias, estão mais expostos ao vírus, mesmo seguindo os protocolos sanitários mais do que qualquer outra pessoa. Essas pessoas, infelizmente, também viram números, e as lideranças alienantes buscam justificar a compra bizarra de remédios nada milagrosos para a pandemia. Os anos sem investir na ciência, em um país com cientistas presentes em praticamente todas as equipes do mundo que desenvolvem as vacinas e medicamentos, mostra porque, dos cinco países dos BRICS, estamos dentre os dois que não fabricam suas próprias vacinas. Em “contrapartida” são os dois que criam as mutações do vírus.
Não sei se alguma das raras curandeiras e rezadeiras que mantém a tradição, nas zonas rural ou urbana, teriam uma reza ou procedimento para dar a cada pessoa a segurança para aguardar a salvação da ciência. Suas vozes com certeza dariam melhores conselhos para evitarmos estar ainda no podium do maior número de mortes em função da pandemia. Escutar a voz da sabedoria é fundamental em qualquer relação humana, o que falta é reconhecer o valor desses saberes, sem querer lhes impor um custo. Custa só calar e escutar? Só ouço o eco do falso líder com o falso remédio. Ele próprio é o vírus e atinge a todos com a sua existência e decisões. Se a ciência não o isolar, só com reza forte.
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Revisão crítica por Tayna Arruda